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SamuelDabó

exercícios de escrita de dentro da alma...conhecer a alma...

SamuelDabó

exercícios de escrita de dentro da alma...conhecer a alma...

28
Set08

U Í G E - A TOCA DOS RATOS

samueldabo

O Sol ainda a meio da trajectória do eixo da Terra, trémulo das nuvens que passavam por ele impelidas pelo vento e tu, meu amor, pequenino o teu vulto visto de cima, da amurada do navio, paquete de luxo, adaptado a transporte de tropas, onde de olhos húmidos e voz embargada pela emoção de te deixar, eu te fixava entre a multidão de gente que se movia numa inquietação de ver.

Tinha trazido o possivel de ti para te ter e já tinha saudades quando o navio ultrapassou a linha de visibilidade da cidade. Os saquinhos de plástico onde guardava as relíquias, os teus cabelos negros e fortes, uma madeixa que cortámos um dia antes para que o aroma se mantivesse activo por mais tempo. Os pelos do púbis, ainda humedecidos do último orgasmo quando te afagava o sexo docemente com as mãos quentes de desejos. O teu cheiro inebriante de todos os meus sentidos. O retrato onde toda a beleza do teu ser me doía de belo, de falta.

O navio tinha três classes de camarotes e agora tinha mais o porão, onde se amontoavam a maioria dos jovens feitos combatentes. A 1ª classe destinava-se aos oficiais, a 2ª aos sargentos e furriéis, a 3ª mais furriéis a alguns cabos.

O porão era para o resto da maralha. Antiga toca dos ratos, adaptada a camarata gigantesca, os beliches triplos, ficando o último rente ao tecto do porão do navio.

Subi ao meu lugar e deitei-me sobre o colchão de espuma macia. A um palmo a madeira pintada de branco que ainda cheirava a desinfectante. Fechei os olhos. O cheiro, os solavancos do navio. abrir de novo e sentir todo o peso duma pressão física omnipresente, que me comprime de encontro ao colchão, que me tolhe qualquer pensamento.  Os primeiros vómitos de quem nunca tinha visto o mar, a maioria vinha do interior profundo, da raia, poucos nesta leva vinham do litoral. O cheiro a penetrar nas narinas a sufocar a alma entaipada, desinfectante com o azedo dos ácidos do estômago, e mais o suor dos corpos e ainda havia os que só tomavam banho ao Domingo. E era uma alucinação de imagens que se instalavam na superfície da mente, empurradas de dentro, de onde toda  a revolta se fixara, atenta, aos movimentos da alma. Alexandra!... Névoa. Cheiros. O tecto branco, branco sujo quase creme. A ondulação, acima ,abaixo, para um e outro lado, chocalhando o que restava de alimentos no estômago que se insurgiam e teimavam em subir de lá, do fundo do saco, de mim obliquo, azedo, entontecido pelo marasmo agitante da toca dos ratos.

Haveria ratos algures entre a bagagem. Escondidos em alguma fresta do convés, ou nos esconsos do fundo. Dizem que o porão é a alma do navio. Imagino-os à espreita que tudo se acalme, atentos ao movimento dos corpos, aos silêncios que em absoluto cairão pela noite. Virão cheirar-me, penso, e acordarei com o roçar dos bigodes no meu rosto, ou o quente do mijo derramado na aflição da fuga. E instala-se-me  uma outra fobia. Os ratos...

Decido levantar-me e procurar refúgio em algum outro lugar mais aberto, respirável. Pelo caminho , cambaleando dos movimentos das ondas, encontro corpos agoniados que se desfazem de parte de si, até ao amarelo da bílis. Um cheiro nauseabundo, pestilento que me provoca náuseas. Desvio-me duma mancha de vómito. São orgasmos do estômago, dizem. Orgasmos dolorosos, desafiantes da nossa integridade física e espiritual.

E Deus aqui, onde paira? A quem abençoa? Alexandra!... O meu Deus é uma mulher. É dela que trago as relíquias que guardo religiosamente e que defenderei com a vida. É por ela que vou vencer, que quero vencer e esta é só a primeira provação.

Na coberta do navio há rostos serenos que aspiram a brisa do mar e colhem do Sol a luz ofuscada de nuvens, mas luz. Há gente encostada à sombra das balsas de salvação. Vejo um espaço vazio e um amigo que fuma um cigarro, junto a uma destas embarcações brancas cobertas de lona.

_Alberto!...Que lugar de coube, amigo?

_O porão!... Mas já me pirei, quero que eles se fodam, vou fazer a viagem aqui mesmo.

Ri do seu ar desvairado e decidido. Ao relento do dia e da noite, acordar orvalhado como flores dum jardim surreal que imaginamos.

_Boa, amigo, vou já buscar as minhas coisas à toca dos ratos. Guarda-me um pouco de espaço.

Corri, como se houvesse pressa,  e lembrei-me dos condenados sem o saber que corriam ao trabalho nas câmaras de gás dos campos nazis. Pasta para sabão... Voltei à toca e ao cheiro impossível, sustendo a respiração por momentos e respirando pela boca,  para evitar os vómitos. Porque amo tudo de mim.

Na coberta o ar é puro. Só mar e Céu. Há noite divirto-me na descoberta das Estrelas conhecidas, as Constelações, a Ursa Maior a Ursa Menor, a Cassiopeia, a Estrela Polar, Marte, a Lua. As fixas são os Planetas. As que piscam são Estrelas e há-as cadentes. Marte avermelhado. O fumo do cigarro quase azul  no ar que rareia. Brisa leve. Há corpos espalhados em redor da amurada. E penso no homem que em breve poisará na Lua e eu não estarei lá para ver.

As refeições são tomadas com a ligeireza possivel. Uma das mãos segura o prato e o copo do vinho. A outra faz o resto. O comandante avisara que o mar estava encapelado, tormentoso e haveria balanços frequentes do navio.

O Sol esta manhã nasceu do lado contrário do navio de onde nascera ontem, de onde nos acompanhara desde a saída. Alguma confusão no meu cérebro. O raciocínio lento. E pensar que andamos ás voltas, como num rapto em que os bandidos não quisessem que apreendêssemos o caminho de regresso..

Os Golfinhos acompanham a rota dos navio com movimentos graciosos e risos estridentes.

Sinto que talvez nos queiram transmitir confiança. Saltam e mergulham ,incessantes, durante horas, ou nos alertem para a imensidão da vida que ainda há para viver, ou nos cantem das suas canções de amor.

 

 

13
Fev08

MEMÓRIAS DA GUERRA (E)

samueldabo

Inicio de Outono, cinzento e confuso, com um sol medroso e ténue a querer romper nuvens compactas que se avolumam em catadupas de espuma.

Desde os primeiros alvores, ainda a neblina cobria a pequena cidade interior, os homens afadigaram-se carregando a bagagem nos carros de transporte, verde guerra.

Para muitos era a primeira grande viagem que faziam . Para alguns era a Pátria em perigo que os chamava ao cumprimento do dever. Para alguns outros, poucos , era a desgraça de uma vida em expansão , cortada no limiar da subida, calçada íngreme, rumo a um mundo de acasos imprevistos, perdidos na irracionalidade duma guerra de e por interesses que não que não albergavam em suas mentes abertas.

Manel António, o rosto magro, macerado pela insónia consentida, povoada de  imagens absurdas, a imagem de Alexandra, menina bonita, o seu amor que doía nas entranhas, um amor absoluto, denso. Em frente.

Foi curta a viagem até ao comboio, uma imensa lagarta de muitos pés que os levaria, pachorrentamente, até ao cais de embarque. Para onde vais? Para onde vamos?

Houvesse uma força poderosa onde acoitar-se. Fugir. Nem Deus nem o Diabo. Há muito deixara  os caminhos míticos . Só o homem pode salvar o homem. O homem é o fim. Abrir mentalidades.

O comboio, ás vezes, apitava. Um silvo agudo que trespassava o cérebro afoito na construção dos cenários possíveis e que sempre terminavam num fim feliz . Vencer! Chegar!

Uma multidão de gente, pais, irmãos, amigos, filhos, amores. Gente com lágrimas.

Alexandra, meu grande amor. Um perfume a pinheiros e maresias.. Um sorriso de confiança. Vencer!  Chegar! E começar tudo, não de novo, mas do ponto de partida. Como se o que vai haver, não houvesse. Colocaremos aqui uma virgula e em breve, 18 20 24 meses, os que forem, reataremos o período longo que concebemos um dia.

As pessoas movimentavam-se inquietas, beijos e abraços de despedida. Apresentações. O choro convulsivo das crianças de olhos incrédulos. As senhoras do M.N.F.distribuindo lembranças. O apito do barco. Imenso. Os lábios que não queriam desligar. Sofreguidão. Angústia.

Do alto da amurada do navio, os olhos fixos na imagem que já era sonho. Os três apitos. A largada. A cabeça a estalar. Os acenos de mãos e o rumor de vozes e choros. A Barra. A multidão já difusa. A cidade que vai desaparecendo do alcance e o mar.

Para muitos, era a primeira vez que viam tanto mar, habituados a rios e riachos. Havia na minha terra, junto à costa, velhos pescadores que acreditavam não haver mais nada para lá do mar. O mar é o fim do mundo.

Foi dum país , com um povo assim, que partimos. Hoje. Outono cinzento e denso.

O navio tinha três classes e o porão, para alojar cerca de mill homens. Uns mais homens que outros.

A Manuel António calhou o porão

O porão do navio adaptado a dormitório de cabos e soldados era Dantesco. Indescritível .

Quando mais tarde, em África, encontraram algum Baga-Baga , destruído,poderam fazer a comparação.

Os homens moviam-se como formigas. Não tão lestos. As camas em beliche, madeira escurecida e húmida. A última, rente ao teto, emparedando as ideias. Corredores estreitos, não fosse a manada magoar-se. Com o avançar do tempo, o enjoo, vómitos. Cheiro nauseabundo. Corpos mal lavados. Mais vómitos. O teto ali rente aos olhos. Loucura.

Manuel António e alguns outros, procuraram abrigo no tombadilho. Ah! O mar. Nascido e criado junto ao mar. Lá, onde a terra acaba. Alexandra.

 

 

 

registed By: Samuel Dabó

 

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