MORREU O FERNANDO DO CALDEIRADAS
Era um homem bem humorado. Cozinheiro exímio, que tinha a paixão de cantar o fado.
Cultivava o dom da simpatia. Morreu durante o sono para que o corpo não sofresse. Boa alma.
Relembro conversas sobre adversidades da vida. A alegria de viver. A fama efémera ao participar num programa televisivo. Relembro a figura pitoresca do cozinheiro aprumado, de branco e com o barrete da classe extrapolado da sua figura baixa e cheia . As gargalhadas e a postura preocupada em alguns momentos menos felizes.
Relembro as festas que organizou com os Karaoke em plena rua, ou passeio público.
E relembro, sobretudo, o espaço do restaurante, O Caldeiradas, que ele comprou e restaurou e que servira de posto da G.N.R.
E relembro, sobretudo, porque foi neste espaço, onde hoje funciona a cozinha, que se situavam as celas de prisão, onde eu fui preso com 10 anos apenas, porque, com outro amigo, atirei pedras ás lâmpadas dos candeeiros públicos. Não sei se parti alguma, ou se foi o outro, mas atirei e foram-me buscar a casa.
A minha mãe não estava, levaram-me e deixaram recado para que fosse ao posto resgatar-me.
Na cela escura chorei como se estivesse possesso e deram-me uma bofetada para que me calasse. Tinha medo do escuro. E isso, nesse tempo, era motivo de chacota.
Morreu um homem bom e de bem de um momento para outro, entre a noite e o dia e isso faz-me sempre reflectir que não somos donos de nada, nem de nós. Inexoravelmente, o fim acontece, como se estivesse programado, por mais que nos esquivemos.
Ser dono do Caldeiradas ou ser dono de nada. Ser o homem mais rico do mundo ou nada.
Ser o mais possessivo ou o mais liberal. Ser o mais feliz hoje ou o mais pessimista. Ser o mais avaro ou o mais odiado dos mortais. Só o amor engrandece, só o amor torna possivel a felicidade de ser pessoa.
Gostei de te conhecer Fernando