MEMÓRIAS DA GUERRA - A CARNE E O CANHÃO
autor: j.r.g.
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autor: j.r.g.
Era manhã cedo como de costume e o sol ainda se ocultava nas brumas da aurora fresca e húmida que não tardaria em transformar-se numa fornalha irritante, tanto faz que houvesse sombra. O ar rarefeito. Os mosquitos sedentos volteando à volta do pescoço, à espera das primeiras gotículas de suor.
Hoje tocara-lhe a ele, Manuel António, picar a estrada de areia amarela e poeirenta. A estrada que tomava o nome de picada, não sei ser por ter sido tantas vezes perfurada pelas varas metálicas, pontiagudas que tremiam, por vezes, nas mãos morenas de jovens de olhar estático e cortante.
O rumo, a rota, o destino, era em frente, seguindo a estrada sangrenta. Só o comandante da coluna sabia. Os guias negros da milícia, eram informados na hora da partida. A longa fila de camiões GMC, carregados de viveres. De armas e munições. Esperança e morte. De quê? De quem? O ruído dos motores, o cheiro do gasóleo, a suor, a fumo que vinha da Tabanka. Os olhares que escondiam mistérios dos meninos negros e de negro. Os dentes brancos, cuspindo no chão à nossa passagem.
Manuel António sente o coração bater desordenado. As têmporas já latejam e doem. Os olhos febris que olham em redor e não vêm. A alma inquieta. Uma perna, os testículos, o corpo a alma, ou só um dos pés. Tudo era possivel dependendo de ser uma mina anti-pessoal ou um fornilho anti carro. No caso do fornilho nem a alma escapava. Tudo feito em merda, como o Dabó, o grande comandante milícia que dera a vida por eles, por ele.
A coluna inicia a marcha a passo lesto até alcançar o ponto limite onde a segurança é feita com o coração.
O grupo da frente são uns dez soldados de varas de aço ás costas, como se foram enxadas. Conversam entre si, à procura de descontrair os nervos à flor da pele. Não tremer. Não pensar.
A picada tem curvas e grandes árvores ladeiam-na de um e outro lado. Em cada uma das bermas seguem em fila os homens de verde salpicados de castanho. No meio os camiões e os dez condenados da linha da frente. É uma linha silenciosa e cada um remete-se à sua solidão de si, para si. A vara espeta a terra, se está rija um pé no local da picada e pica mais à frente, e o outro pé avança.. São poucos mas longos os quilómetros a vencer.
Pica, pé, pica outro pé. Pica pé, pica outro pé. pica, pé, pica outro pé. Interminável.
Manuel António está tenso e pensa em Cristina, a bela Cristina que o espera inteiro. Não deve pensar , mas pensa. Não pode pensar, mas pensa. Pé ante pé. pensa.
Cristina dissera.lhe, lábios nos lábios que ele ia voltar. Cerejas, sim, eram cerejas os sabores dos lábios dela. Vermelhas. Mas vermelho é morte. E o outro de si, mas também é vida. A morte e a vida na consciência de um acto de picagem de terra batida ou remexida. Atenção. A dureza pode ser um embuste. Se houver um fornilho estou feito. Podem colocar a mina com antecedência, regá-la com mijo, deixar que endureça.
O sol já marcha e não corre aragem. Mosquitos. Cristina. Gritar a angústia, o medo. Dizer não, saltar o muro de silêncio. Os macacos riem-se? Ou gritam espavoridos? Ele, eles, macacos domesticados por Deus, ou em nome de Deus. Os outros também têm Deus. Um mesmo Deus senhor da Terra e dos animais. Um Deus poderoso, omnipotente e justo. Como justo? Quer uns quer outros interrogam-se, sobre a justeza de se matarem uns aos outros, de se armadilharem ignominiosamente.
A guerra, qualquer guerra é uma humilhação do homem. Ele sempre fora pacifico, mas irritava-se, por vezes. Sentia a impunidade com que se cometiam fraudes e atentados à dignidade. Considerava-se um humanista. Herdeiro do humanismo subjacente à Revolução Francesa. Ir a Paris, um sonho de anos. A Pátria da Liberdade. Paris em chamas de amor.
Pica, passo, pica, passo, pica, passo. Suor e sangue na sola dos pés e no calcanhar. Pés chatos, joanetes. Ainda pensara que se iria livrar. Pica, pé, pica, pé, pica, pé...
Chegaram ao perímetro de segurança, exaustos, os dez da frente. Psicologicamente exaustos.
Manuel António, os olhos em volta, desolação. E para dentro de si: Cristina, meu amor, mais uma etapa, dentro, onde a solidão se povoa e se transforma em alarido, contentamento.
Chegam ás portas do "quartel". Manuel António estaca, estarrecido, cambaleia, os olhos vidrados, comoção, medo, terror, incredibilidade do que vê.
Como toupeiras, nus, apenas uns calções esfarrapados. Os corpos escuros do sol, da poeira, suor, lama. As barbas negras e os cabelos crescidos, pré-históricos, urrando selvaticamente, possessos de humanidade, assaltam os camiões. sem ordem, sem protocolo, em busca de cerveja, ainda que quente, saltitam enquanto uns outros, incrédulos assomem dos buracos cavados no chão que lhes servem de caserna, de quarto, de abrigo. Coçam-se, esbracejam. Gritam e dizem palavras inteligíveis. Trocam abraços. Um grupo, perto, de olhos parados, sem tempo, sem luz. Olhos mortos. almas agarradas a um fio de memória que se recusa morrer.
Ninguém se conhece e são como irmãos. Mais que irmãos. Amam-se e não sabem que é amor o que sentem, porque se abraçam, se beijam. Dizem que sofrem ataques diários. Abalar psicológicamente. Ouvem-nos gritar por entre o som da metralha. Vêm pela calada da noite. Chamam-lhes nomes ofensivos. Espalham ódio. Não os querm destruir fisicamente, só abalar a psique, a altivez da cor da pele. Correr com eles, os nossos soldados. Nossos. De quem?
Hino a Gandembel
Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.
- Meu Alferes, uma saída!
Tudo começa a correr.
- Não é pr’aqui, é pr’ponte!,
Logo se ouve dizer.
Oh!, Gandembel,
És alvo das canhoadas,
Verilaites (1) e morteiradas.
Oh!, Gandembel,
Refúgio de vampiros,
Onde se ligam os rádios
Ao som de estrondos e tiros.
A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê (2)
É preciso protecção.
Gandembel, encantador,
És um campo de nudismo,
Onde o fogo de artifício
É feito p’lo terrorismo.
Temos por v’zinhos Balana (3),
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três (4) te protege.
Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!
Recolha: José Teixeira / Revisão de texto: L.G.
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(1) Verylights
(2) WC
(3) A famosa ponte Balana
(4) A espingarda automática G-3
O Delfim era um jovem. como todos os que compunham a Companhia, arrancado compulsivamente à terra, à família, aos amores. Um jovem alegre, mas intranquilo, emocionalmente frágil, questionante do porquê ele, ali, algures África.
Cumpria o seu dever ao integrar as tropas regulares de um país, o seu país. Integrava as colunas, sofria emboscadas e estava sujeito ás armadilhas, ás minas traiçoeiras que já vira rebentar, pisadas por jovens como ele e sem que houvesse em quem atirar, fazer a desforra. Nada. minas solitárias, intransigentes com uma pequena distracção, com a insuficiência de material de detecção. A importância da desforra. A vingança...
O delfim bebia para afogar o desespero de estar ali, algures África sem ver a família, sem poder ajudar a família, sem poder estar com a namorada, os amigos.
O ar era quente e húmido. As mulheres andavam de peito descoberto. De resto eram só jovens como ele, sem grandes diálogos, que jogavam as cartas, a lerpa, nos momentos de ócio e bebiam na cantina cerveja que matasse a sede e a saudade, que afugentasse a morte. A morte, morrer dum tiro vindo do silêncio da mata verde e bela.
Manuel António observava aquela personalidade caótica, dia após dia. Delfim viera falar-lhe do efeito das granadas ofensivas, granadas de mão. Cada um tinha umas quantas à sua guarda. Levavam-nas e traziam-nas. Calculavam que rebentariam se as tivessem de usar. Não traziam prazo de garantia. Estavam ali, a um canto dos armários, verdes , elas, as granadas, com uns relevos a toda a volta para evitar que resvalassem das mãos que as atirariam, um dia.
-Sabes, Manuel António, ainda um dia gostava de ver o efeito disto a rebentar.
A granada na mão. A cavilha de segurança, um pedaço de arame revirado na ponta, a argola de onde um dedo a puxaria, com determinação.
Manuel António olhou para delfim. Procurou os olhos e só viu uma espécie de baba que lhe saía dos cantos dos lábios. Lábios finos, cortantes. Abominava granadas, balas, tudo o que cheirasse a pólvora..
- Cuidado com isso, pá. Que fazes com a granada? Vão sair?
-Não, mas que gostava de ver isto rebentar, gostava. Para que temos isto?
Cambaleava de um lado para o outro. Olhou-o, agora sim, nos olhos pequeninos se mi cerrados, um brilho estranho, metálico a sobressair da pele escurecida pelo Sol .
-É melhor nunca saberes o efeito dessa merda. Vai guardar. Não podes andar aí com uma granada ofensiva. Cais e matas-.te e matas alguém.
Delfim recuou uns passos, temendo que o outro lhe tirasse a granada. Fez um esgar, um riso indecifrável se de alegria se de louco ou cobardia. Manuel António insistiu, tentando segurá-lo ali até que viesse alguém. Um outro. E disse.
-És de Vila Verde?. Fala-me da tua vida lá, Família, namorada. Que fazias.
Os olhos de Delfim encheram-se de lágrimas e a voz soou rouca, trémula, desequilibrada.
-Sou. Porra, não me fales da família. Eu era uma parte que fazia falta. A namorada já me pôs os cornos. Que sa foda. Vai cu caralho. Ninguém me escreve. Ás tantas já não tenho ninguém.
Numa das mãos a garrafa de cerveja quase vazia, na outra a granada. E nada. Pessoa alguma aparecia naquele fim de tarde, quase noite. O motor da geradora roncava a sua toada constante e monótona. O grito agonizante dos macacos que se recolhiam.
-Tem calma, disse Manuel António, os olhos húmidos, moreno quase negro, olhos castanhos de um escuro quase negro, vais arranjar outra quando chegares. Aguenta. São mais uns meses, poucos.
Delfim chorava convulsivamente. bebeu o resto da cerveja dum trago, sem uma palavra e desandou para a cantina dos soldados.
Manuel António ficou a vê-lo, cambaleando em vai e vens e troca de passos, viu que entrou primeiro na caserna e voltou a sair. Descansou porque não lhe viu a granada na mão.
Lá ia ele, o Delfim, para mais umas cervejas, até o fim de si. e pensou que era uma geração fodida. O álcool, o calor, a pressão, os tiros e rebentamentos, as armadilhas, as minas.
Uma geração estropiada. Aguentar, prever-se de si, a si, mas como ? Se o quadro estava pintado de uma forma indelével. Sem saída que provesse o futuro que queria.
Como sair ileso? os neurónios desafectados, os genes compactados na revolta contra os elementos. Como sair ileso deste inferno?
Ouviu-se um estrondo medonho, Manuel António encolheu-se. deitou-se no chão. todo ele tremia sem saber que atitude tomar. A espingarda estava longe, mas estranhou não ver a correria do costume . Silêncio. Apenas o motor da geradora, monótono, incessante. Já não era um ruído. É como se fizesse parte do silêncio.
O básico a correr.
-É básico, o que foi?
-Olha, rebentou uma granada na cantina, os dois cantineiros foram cu caralho.
O Delfim, foda-se. O choro de raiva. O choro em raiva e a palavra FODA-SE. Agonizante de si. A justificar o poema:
Esta noite
quando todos dormirem
pego no vento
e fujo...
Manuel António no fundo da caserna e no silêncio da madrugada, onde só o ruído constante e monótono do motor da geradora, tão monótono que deixara quase de se ouvir, soava na penumbra.
Deixar tudo para´trás, a família, o grande amor da sua vida. Sim era aqui que tudo esbatia e se embrulhava em reflexos de si e do problema que de si evoluía em emanações voláteis e pouco consistentes para agir.
Seria de noite, mas não enquanto todos dormissem, porque havia as sentinelas e toda a Aldeia para atravessar. Também não adejava que fosse pegando o vento, em metáfora de fuga alada. Mas fugir, queria. Não fugir como soe dizer-se por cobardia, por não ter argumentos que satisfizessem a sua consciência, mas por sentir que era uma violência inútil, o que lhe ordenavam que fizesse. E havia as crianças que podiam morrer, nas armadilhas, nas emboscadas. As violações consentidas de mulheres, de crianças.
A palavra coragem a desenraizar-se, batendo nas têmporas latejantes, tornando-se grande e tapando a palavra amor que procurava subsistir em toda a plenitude da negativa de não o fazer, de ficar e aguentar.
Havia quem o tivesse feito antes. Paris, Argel. Uns tinham apoio financeiro, outros não. Chegados lá faziam-se à vida. Procuravam ajuda entre os que lá viviam e tinham segurado a existência e alargado o fio condutor. Digladiavam-se provavelmente noutras lutas não menos sórdidas.
Mas ele, Manuel António estava ali naquele fim de mundo. cheirando a catinga, suado e debatendo-se com a coragem e a cobardia, a razão e a ilusão do nada absoluto, onde a palavra amor ganhava uma particular acuidade. Sonhava com o amor de uma mulher absoluta de carisma na sua essência dela e na sua própria, dele, Manuel António.
Há dias que mal dormia. Debatia-se no infinito da virtude que se evadia de si enovelada em argumentos fantásticos de ser homem. Ser homem pela primeira vez, assumindo toda a responsabilidade de o ser e não mais se escudar em estímulos estereotipados de que alimentava o próprio ego.
Podia ser morto na fuga. Ou no acto de captura, se os outros não se apercebessem que queria passar para o lado deles. Como entender-se com os dialectos da guerrilha? Não iria encontrar, por grande sorte , quem falasse Português e Amílcar Cabral estava morto.
A estratégia estava delineada na sua mente febril. Havia ainda os prós e os contras. A loucura total da irrazão. Vencer a todo o custo a mediocridade que se achava por não ser.
Na coluna os homens iam sempre em fila e ele escolheria ser o último. Ninguém gostava de ir em último. Olhar para trás e saber que não havia nada, gente sua. E deixar-se-ia ficar, como se tivesse perdido o contacto e ficado desorientado do rumo e não quisera gritar.
Levaria as cartas e os escritos que criara no tempo passado naquele pesadelo de mistério onde as pessoas tinham olhos profundos e as crianças olhavam abismados para a pele diferente.
A decisão aprumava-se na ideia em concreto. Ainda uns pequenos pormenores. Alguma resistência. Quando as cartas que enviava diariamente não chegassem. Imaginar a dor daquele corpo franzino e belo de mulher que amava do interior de si e que sentia ser igualmente amado, visceralmente amado. Como cortar este elo que o ligava em espírito.?
Tentou afastar as ideias por um momento. mas não, voltava tudo de novo, insistente, e a dor nas têmporas latejantes, como se fosse explodir a cabeça e tudo terminasse ali sem que tivesse de mover-se, em atitude.
Dois dias depois desta batalha mental, a noite pusera-se apática e dolorosamente quieta de luz do luar. Tudo opaco em redor de onde a luz dos candeeiros não chegava.
Os homens ,convocados durante a tarde reuniam-se na parada. Peitos arfantes de confusão interior não manifestada. Gente boa dos campos e das cidades. Gente inteira, como os negros que agora em silêncio, também eles preparavam mais uma saída, como guias das picadas que iriam percorrer toda a noite em patrulha de reconhecimento, carne de primeira para balas e armadilhas. Prevenção.
Manuel António vai atrás, seguro de si, convicto da temeridade da ideia. Do que deixava ficar.
Os homens deambularam a noite toda e não encontraram a caça. Aos primeiros alvores da manhã entraram no quartel visivelmente cansados. Os rostos cor de cera. As pernas bambas, indolentes e iam-se deixando cair pelos cantos de encontro à caserna.
O Alferes conta os homens, reconta e ,em sobressalto, diz que falta um homem.
Chama-os um por um. manda alguém ás latrinas, ao interior da caserna, que voltam dizendo não haver ninguém mais.
Falta o Manuel António, o cabo.
Na densa mata de aromas a avivar a memória, no limiar da infância, os homens acoitados de armas aperradas, tensos, olhos vivos no estreito carreiro eleito como objectivo da morte.
O silêncio, cortado de avisos da macacada inquieta por intrusão abusiva do seu espaço, sem permissão para ciciar o medo ou a revolta.
Imagino as pessoas que se põem ao caminho algures no interior da mata. Mulheres que vão labutar na bolanha, que levam crianças, algumas, de colo. Gente distraída, indefesa, gente que fala uma outra língua.
Os insectos colados no suor do corpo, num acto supremo de amor sádico, mas amor, porque se bastam em nós, em mim, se fertilizam e multiplicam.
Lembrar as emboscadas de outros caminhos, na vida já vivida e na que espera por viver, na solicitude de nos acharmos no direito de decidir o tempo do outro, ali, no silêncio da mata, floresta de árvores enormes, amantes taciturnas de ervas daninhas e bichos ainda não adulterados, ainda não manipulados.
Olho os rostos dos outros numa tentativa de ver o meu próprio rosto. De achar os contornos da razão que nos, me motiva ou que nos, me permite, não ser e sendo os criminosos que matam à distância e a coberto da cilada, surpresa, se bem que a mando, ainda que a mando, de quê? de quem? E como vou, vamos viver depois, após o descarregar das balas agigantadas pelo percutir do cão da arma feita monstro em mãos que se permitem não saber?
Tu, Transmontano, recto na apreciação dos usos e costumes e aberto à junção de novos conhecimentos, que respeitas a integridade e zeloso dos fracos.
Aquele, beirão, entre a alta, a baixa e o litoral. O olhar franco, o espírito fraterno, cioso de estender a mão a quem venha por bem.
Pássaros grandes, abutres, aguardam pacientes a orgia da carne esventrada por instantes e atirada em lascas à súcia dos milhafres expectantes.
Olho ainda o rosto do tripeiro, do minhoto. Gente esforçada e penitente, afiançada nos baptismos de Sés, ermidas e oradas.
Olho e não vejo como subsiste este estar aqui, estando noutro lugar. E volto a procurar, nos rostos inocentes que queremos ser, uma luz que me permite ver na escuridão.
O sol afecta os neurónios já empobrecidos por décadas de ostracismo cultural. Não fomos habituados a pensar. Na adversidade, lá estavam: Deus, Jesus, Maria e os Santos Apóstolos.
E agora que era preciso raciocinar, servimo-nos dos mesmos postulados. Que Deus nos salve, enquanto matamos o filho, o pai, a mãe, de adeptos de outro Deus e Santidades.
O rosto envergonhado do Algarvio, A tez morena do alto e do baixo Alentejano dum cabrão, e é o mesmo sentir de não sou eu, quem aqui está de olhos fitos numa imagem de terra no carreiro.
O capitão, da fina elite Lisboeta, despreocupado, sem galões, como um igual a tantos, a justificar que a cultura não é desculpa para não vencer, matando a estupidez que se quer impor à história. Olhando um por um a a cada instante.
E eu? A quem pertenço? De que região sou oriundo? De Portugal inteiro, ou cidadão do mundo?
Foi quando o tiroteio irrompeu com fragor de explosões de granadas de morteiro e os uivos sibilantes das balas tracejantes por entre as folhas verdes do sibilino e majestoso arvoredo.
Saltam macacos apavorados, guinchando em estrondos de ódio ou medo. Aves que piam, e são gritos aflitos de mães obrigadas a abandonar o ninho.
Como começou, parou, o tiroteio. Foram ver.
Uma criança, talvez de 2 ou 2 e meio, ilesa, chorava sobre o corpo crivado e o sangue de sua mãe.
Amigo
preciso dos cem euros que aí tens
senão
sou posto fora
não pagando a renda já vencida
e os juros pedidos
pela demora
Lamento amigo sabes
que sou teu
do coração
mas o cem euros que trago
aqui nesta carteira
são para pagar o fato e
a gravata
E os outros
alguns milhões
na conta aprazada
são para prevenir
que não me calhe
aquilo que agora
a ti te calha
Vieram de madrugada, as Tágides, e inundaram o meu sonho até então num emaranhado confuso, tornando-o mais fluente e limpido de contornos racionáveis, a deixar-me pairar nas nuvens dos desejos.
Havia grandes precepicios, entre altas montanhas agrestes e despidas de vejetação. No fundo, algém que me é querido, muito querido, um ente de feições descarnadas pela dor e ao cimo da montanha a salvação.
Eu a meio, impotente sem meios que me valessem para chegar à base da ravina, e ainda que chegasse, como alcançar o cimo , a perfeição?
E dei por mim a descobrir que voava. Não com asas como as aves da minha imaginação, mas com um simples movimento dos braços e das pernas em conluio.
Desci logo, a ver-me, como se nadasse. A ver a minha alma desprendida. Chegado ao fundo, que é onde a desgraça sempre bate, peguei o corpo inerte e quase descarnado. Pele e osso.
Os olhos abertos num espanto de quem acha em última instância a salvação.
E oiço as minhas próprias palavras ciciantes.
-Sou eu meu amor, aquele que te projectou muma ejaculação de Primavera, com tanto amor que te perdeu . Venho colher-te, porque tu és meu, queira ou não queira o papão.
E pegando nos meus braços, repentinamente imensos de força, o corpo a renascer de vida, inicio a subida ingreme, num esforço de marés vivas, contra o tempo incerto, a alma que pode voltar ao lugar de onde havia saído.
A meio, uma lufada de ares contrários desvia-me a tragetória. O suor escorre-me nas faces geladas pela euforia da subida agreste. Dou uma guinada. venço o vácuo que queria abater-me e mais a minha carga.
E num salto de gigante, numa última investida da alma agitada que ameaça voltar à matéria , galgo os silvados de picos agudizantes, a árvore altiva de ramos dispersos, a pedra sinuosa que proteje a plataforma firme e segura e deposito o corpo que de imediato renasce, ganha carne, cor e movimento.
E nisto, o sonho, se era sonho, acaba. E volto atordoado, abanando os braços, a ver se era verdade que voava.
Mãe
Mulher abandonada
por amores perdidos no deserto da vida
Mãe a quem a vida tirou o filho a filha
sem rasto em raptos sem destino
e que não terás a mensagem no dia que inventaram
Mãe que lutas ainda por um filho ou filha
arrastados na desgraça das drogas
que enriquecem abutres sedentos e insensíveis
e não terás direito a um beijo de saudação
Mãe que perdeste por morte súbita ou acidental
o único fruto saido do teu ventre
e não ouvirás a sua voz ladina cantar-te os parabéns
Mãe que não foste ensinada a sê-lo e por mor disso
te retiraram o filho os filhos
e não saberás sequer que inventaram um dia com o teu nome
Mãe preversa abandonada pelos filhos que geraste
Mãe de presos, ladrões assassinos, violadores
Mãe de loucos
Mãe de mudos, cegos.surdos , e outras anomalias congénitas
Mãe Mulher
Mãe coragem
Mãe que já te foste desta vida
Eu te saudo , hoje , amanhã, depois...
Mãe
No Correio da Manhã de Domingo, a noticia: Turma angaria dinheiro para ajudar professor.
É uma noticia que nos alerta para os valores que subsistem. E nos evidencia que nem tudo vai mal no reino da educação..
O professor disponibilizou a viatura para uma prova de aferição de conhecimentos no terreno.
Houve um acidente sem feridos, onde a viatura ficou muito danificada. Provavelmente o arranjo ficou de fora das coberturas de seguro contratadas.
Os alunos, jovens, disponibilizaram-se em angariar fundos para ajudar o professor e é emocionante a descrição dos meios, a criatividade, o empenho das famílias, da comunidade.
Um exemplo a ser divulgado por todos os meios. É possível congregar valores em torno da batalha pela educação. Afinal as novas gerações têm valores. Não são só cabeças ocas e insurrectas .
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