CÃO DE NÓS
Enterrei o Médor, o velho cão que foi um de nós, sob a copa frondosa do Pinheiro manso em frente das últimas casas da Vila, na pequena mata que a semi circunda.
Atravessei as ruas com ele à costas, pesado. Numa das mãos a pá com que revolveria a terra, cavando o buraco suficientemente fundo para que os outros animais não lhe descobrissem o corpo.
A Vila tem pouca gente, já. Foram partindo aos poucos da inacção ao desenvolvimento. Da pobreza dos espíritos, cadáveres adiados que assomam ás portas a ver-me passar, o saco negro às costa. Médor, o cão de nós. E eles, velhos. Quem os levará? Quando?
E enquanto caminho relembro,
Médor, arrancado ás tetas da mãe, sugando o biberão que lhe arranjámos com carinho, os ganidos de bebé, como um bebé, a aconchegar-se onde sentia o quente, os olhos vivos. Cheirando-nos, absorvendo-nos para não mais esquecer. Para ser um de nós, para sempre.
Quando cresceu, atrevido, ladrava e dava ao rabo quando sentia que fizera algo que não devia, como roer sapatos, escavar sofás, ou rasgar uma qualquer peça de roupa esquecida ao seu alcance
.As idas ao médico. Curioso, como gostava do médico. Zangava-se era comigo que o segurava enquanto o outro lhe espetava a agulha.
Pesa que nem chumbo, digo para comigo, e ainda falta um tanto de caminho. Saúdo os mortos à porta das casas, que me olham . Não sei se me vêm, mas olham-me. Assustados.
As correrias loucas na areia da praia, os buracos que abrias e cheiravas e escavavas mais, até desapareceres sobre o monte de areia.
-Médor!... chamava-te e vinhas louco, em zig zags alucinantes e quase me derrubavas.
Estou a lembrar-me da tua primeira queca. A cadela com o cio tinha um namorado cioso. Mas tu eras destemido, era a tua primeira vez e o cheiro alucinou-te, correste para ela, montaste-a e introduziste de imediato o teu membro erecto, sem preparação. O outro cão furioso, não fora eu a afugentá-lo com um pau, tinha-te desfeito.
Fizeste o teu papel de macho. Nem sei se tiveste o teu orgasmo. Nem sei se os cães têm orgasmos. Porque a cadela assustada com o alarido do namorado forçou a descolagem, e fugiu espavorida. Tu ganias desalmadamente. Pudera, ia-te arrancando o sexo. As entranhas.
Já vejo as árvores que se perfilam ao longo da estrada. São Pinheiros e Eucaliptos, algum mato rasteiro, pequenas plantas amarelas, azedas, que chupávamos em crianças, descuidados, travessos.
A tua queca saiu-nos cara. Atingiu-te a próstata, médico, medicamentos. O teu sofrimento, os teus olhos doces clamando protecção. A minha mão sobre a tua cabeça .
Comias desalmadamente e vinhas ainda reclamar do meu prato quando te agradava. Ganias. Adoravas raia cosida.
Meu cão de nós. Médor.
Depositei o saco negro na areia junto ao Pinheiro e, com a pá, fui retirando areia, depois terra, raízes, alargando o espaço, a medir-te, morto, a ver os teus olhos vivos como se rissem ,da alegria de me ver chegar. A cova. Olho o volume que se evidencia dentro do saco.
Eras um cão bom. Lambias os gatos da casa quando eles se enroscavam no teu corpo à procura de quente. Quando se levantavam e te arranhavam, ganias e ainda levavas uma patada assanhada. Doce cão. Médor.
Pego no saco e coloco-o na cova, mas reparo que fica pouco espaço até à superfície. E cavo um pouco mais.
Entravas pelo mar quando nadávamos e vinhas até nós, contente e lambias as nossas caras. Nadavas a nosso lado para terra, como se competíssemos.
Os nossos passeios. E de como fazias as necessidades sempre de encontro a uma árvore. E de como dormias aos pés da cama e te incomodavas sempre que eu estendia os meus pés e te tocava.
Volto a colocar o saco. Sim, agora está perfeito. É suficiente. E volto a reencher a cova colocando terra sobre o teu corpo. Estás morto. E vives ainda, infinitamente em nós, até ao fim de nós.