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SamuelDabó

exercícios de escrita de dentro da alma...conhecer a alma...

SamuelDabó

exercícios de escrita de dentro da alma...conhecer a alma...

13
Jun09

MEMÓRIAS DA GUERRA - A CIDADE - O PALUDISMO - SODOMIA

samueldabo

Era a primeira vez que viajava de avião, uma nave bojuda, movida a hélices potentes, voando baixo sobre a mata luxuriante de magia, que parecia querer cair  a cada instante e mergulhar no vazio, quando passava por turbulências do ar.

Manuel António, sentado entre caixotes de mercadorias, vestido de gente, era como se fosse de férias, a tez amarelecida pelo medo.

Conseguira esta fuga breve de ir à cidade, os dentes  eram um motivo bastante, a dignidade, os medos, o direito de recusa não, mas os dentes eram um motivo bastante.

A cidade era um deslumbramento ante os seus olhos, há mais de um ano convertidos ao sol e à floresta, ao pó e à condição expectante de viver, ao perscrutar nocturno dos ruídos.

Alugou um quarto no hotel e deambulou pela cidade em busca de sorrisos. Jantou num restaurante e comeu ostras na esplanada junto ao mar, viu mulheres Atlânticas que pareciam estrelas de cinema, dizia-se que enganavam os maridos metidos no mato.

Ao longe ouviam-se rebentamentos de granadas, ouvia-se dizer que era a psico do inimigo, flagelar as mentes até à possível rotura. Lúgubres, trooommm, trooommm e após um breve silêncio, de novo trooommm. trooommm, incessantes.

Patentes intermédias passeavam-se fardados de divisas e galões, imponentes, austeros, como se a carne deles fosse indiferente à penetração de balas e estilhaços, como se não apodrecesse do mesmo modo que a do básico, do soldado.

Altas patentes recolhidas em seguras moradias ou escoltadas por diversos seguranças, como quando comandavam do alto dos céus, na falsa segurança das avionetas, e olhavam a fila de pirilau esbatida no terreno poeirento ou alagadiço das bolanhas.

Sentiu a euforia de ouvir a voz de Alexandra, tremia enquanto marcava o número, tinham combinado tudo com tempo entre cartas, mas não sabia se havia algum motivo contrário.

A voz da telefonista:

_Troncas...

Era assim, repetiu o número três vezes com medo de se ter enganado e ouviu a voz que dizia, falem...

Alexandra!...meu amor

_Que alegria meu querido, que emoção. Tenho saudades...

As vozes dele e dela embargadas, emaranhados na linguagem confusa que pareciam reaprender de novo, querer dizer tudo e as palavras amontoadas em sobressaltos gritantes, movediças nas gargantas sequiosas. Disseram amor, os olhos dele e dela ofuscados pelo sal de lágrimas de alegria.

E de repente o silêncio abrupto entre o alarido de vozes desesperadas que aguardavam a vez. Ficou a voz dela ecoando na penumbra que se fez no seu pensamento. Apanhar qualquer coisa e partir, o vento, e partir...

De regresso a casa, que é como dizer, ao mato onde teria de viver mais alguns meses, a lancha pernoitou num aquartelamento de uma pequena aldeia, onde encontrou um companheiro de escola. Abraçaram-se emotivamente e foi convidado para um jantar de saborosas ostras que tinham apanhado durante a tarde. Lembrar a infância, o mar, a outra mata tão serena que os assustava ao entardecer.

Foi então,  já no calor do álcool que tudo transforma em absurda ingenuidade, que o amigo lhe contou como, com o beneplácito de furriéis e oficiais, se dedicavam a enrabar miúdos, para satisfação da libido e fugindo à responsabilidade de violar ou deflorar miúdas, altamente proibido pela moral, quer a local, quer a oficial.

Manuel António ficou estarrecido, o outro tentava justificar, que lhes davam em troca gasóleo que era para eles um bem altamente precioso e depois, ficariam mais miúdas livres para o futuro...se os putos virassem paneleiros.

Os olhos do outro encovados entre a cavidade onde se escondiam uns olhos pequeninos e já sem brilho, olhos mortos, olhos absorvidos pela insanidade ambiente.

Saiu para a noite, passos trémulos, cambaleante entre destroços pelos cantos das sombras que a luz difusa do candeeiro expandia mortiça.A saída era às seis da manhã.

Adormeceu em sonhos pavorosos, gritos, acusações tremendas, armas que se disparavam sozinhas, vales de grande profundidade e Alexandra num dos extremos, inacessível. Rostos moribundos de negros acusadores desde há milénios e crianças de olhar dócil, submissas.

Acordou entre suores e dores do corpo alucinantes, olhou o relógio e eram, 7 horas.

Acreditou que talvez tivesse havido algum contratempo, mas a  lancha tinha partido e só havia outra dentro de 5 a 6 dias.

Manuel António passou o dia acabrunhado, sem forças ou alento de dentro, mais uma semana sem correio, a palavra amante e indutora da esperança, para mais agora que se sentia encurralado em ambiente hostil, afogado em dúvidas sobre o que fazer.

E sobreveio a doença temida, terrível, o paludismo, três dias na cama entre vómitos e suores, apenas pão e água, a sopa vomitava como qualquer outro comer, havia uma conserva de ananás que era tolerada, mas tão doce que lhe provocou enjoo ao terceiro dia, e depois tinha de a pagar e eram escassos os recursos. Sentiu a falta dum carinho de mulher.

 

 

 

 

 

Era a primeira vez que viajava de avião, uma nave bojuda, movida a hélices potentes, voando baixo sobre a mata luxuriante de magia, que parecia querer cair  a cada instante e mergulhar no vazio, quando passava por turbulências do ar.

Manuel António, sentado entre caixotes de mercadorias, vestido de gente, era como se fosse de férias, a tez amarelecida pelo medo.

Conseguira esta fuga breve de ir à cidade, os dentes  eram um motivo bastante, a dignidade, os medos, o direito de recusa não, mas os dentes eram um motivo bastante.

A cidade era um deslumbramento ante os seus olhos, há mais de um ano convertidos ao sol e à floresta, ao pó e à condição expectante de viver, ao perscrutar nocturno dos ruídos.

Alugou um quarto no hotel e deambulou pela cidade em busca de sorrisos. Jantou num restaurante e comeu ostras na esplanada junto ao mar, viu mulheres Atlânticas que pareciam estrelas de cinema, dizia-se que enganavam os maridos metidos no mato.

Ao longe ouviam-se rebentamentos de granadas, ouvia-se dizer que era a psico do inimigo, flagelar as mentes até à possível rotura. Lúgubres, trooommm, trooommm e após um breve silêncio, de novo trooommm. trooommm, incessantes.

Patentes intermédias passeavam-se fardados de divisas e galões, imponentes, austeros, como se a carne deles fosse indiferente à penetração de balas e estilhaços, como se não apodrecesse do mesmo modo que a do básico, do soldado.

Altas patentes recolhidas em seguras moradias ou escoltadas por diversos seguranças, como quando comandavam do alto dos céus, na falsa segurança das avionetas, e olhavam a fila de pirilau esbatida no terreno poeirento ou alagadiço das bolanhas.

Sentiu a euforia de ouvir a voz de Alexandra, tremia enquanto marcava o número, tinham combinado tudo com tempo entre cartas, mas não sabia se havia algum motivo contrário.

A voz da telefonista:

_Troncas...

Era assim, repetiu o número três vezes com medo de se ter enganado e ouviu a voz que dizia, falem...

Alexandra!...meu amor

_Que alegria meu querido, que emoção. Tenho saudades...

As vozes dele e dela embargadas, emaranhados na linguagem confusa que pareciam reaprender de novo, querer dizer tudo e as palavras amontoadas em sobressaltos gritantes, movediças nas gargantas sequiosas. Disseram amor, os olhos dele e dela ofuscados pelo sal de lágrimas de alegria.

E de repente o silêncio abrupto entre o alarido de vozes desesperadas que aguardavam a vez. Ficou a voz dela ecoando na penumbra que se fez no seu pensamento. Apanhar qualquer coisa e partir, o vento, e partir...

De regresso a casa, que é como dizer, ao mato onde teria de viver mais alguns meses, a lancha pernoitou num aquartelamento de uma pequena aldeia, onde encontrou um companheiro de escola. Abraçaram-se emotivamente e foi convidado para um jantar de saborosas ostras que tinham apanhado durante a tarde. Lembrar a infância, o mar, a outra mata tão serena que os assustava ao entardecer.

Foi então,  já no calor do álcool que tudo transforma em absurda ingenuidade, que o amigo lhe contou como, com o beneplácito de furriéis e oficiais, se dedicavam a enrabar miúdos, para satisfação da libido e fugindo à responsabilidade de violar ou deflorar miúdas, altamente proibido pela moral, quer a local, quer a oficial.

Manuel António ficou estarrecido, o outro tentava justificar, que lhes davam em troca gasóleo que era para eles um bem altamente precioso e depois, ficariam mais miúdas livres para o futuro...se os putos virassem paneleiros.

Os olhos do outro encovados entre a cavidade onde se escondiam uns olhos pequeninos e já sem brilho, olhos mortos, olhos absorvidos pela insanidade ambiente.

Saiu para a noite, passos trémulos, cambaleante entre destroços pelos cantos das sombras que a luz difusa do candeeiro expandia mortiça.A saída era às seis da manhã.

Adormeceu em sonhos pavorosos, gritos, acusações tremendas, armas que se disparavam sozinhas, vales de grande profundidade e Alexandra num dos extremos, inacessível. Rostos moribundos de negros acusadores desde há milénios e crianças de olhar dócil, submissas.

Acordou entre suores e dores do corpo alucinantes, olhou o relógio e eram, 7 horas.

Acreditou que talvez tivesse havido algum contratempo, mas a  lancha tinha partido e só havia outra dentro de 5 a 6 dias.

Manuel António passou o dia acabrunhado, sem forças ou alento de dentro, mais uma semana sem correio, a palavra amante e indutora da esperança, para mais agora que se sentia encurralado em ambiente hostil, afogado em dúvidas sobre o que fazer.

E sobreveio a doença temida, terrível, o paludismo, três dias na cama entre vómitos e suores, apenas pão e água, a sopa vomitava como qualquer outro comer, havia uma conserva de ananás que era tolerada, mas tão doce que lhe provocou enjoo ao terceiro dia, e depois tinha de a pagar e eram escassos os recursos. Sentiu a falta dum carinho de mulher.

 

 jrg

 

25
Jan09

BATATAS FRITAS - MEMÓRIAS DA GUERRA

samueldabo

Do regresso da cidade, a lancha aportou a um aquartelamento intermédio, porque viajar de noite não era aconselhável. Qualquer luz seria um alvo fácil, ou porque a tropa não estava disposta a horas extraordinárias.

Manuel António encontrou um amigo, um condiscipulo de escola de vila, de pescarias no juncal junto ás dunas. Há quanto tempo? Uma eternidade todo o curto tempo decorrido e ainda o fim não se pressentia, se é que havia fim ou tempo, ou apenas o verde das arvores frondosas palmeira que respiravam do alto de onde talvez se visse o mundo, o outro mundo de onde viera e deixara uma parte importante da alma.

Partiriam de manhã ás 6. Passou o dia em volta do rio, as crianças brincavam com canas, pequenos pedaços de madeira que serviam de barcos, corriam sem sentido em volta de si, em volta dum tempo que tardava. As barrigas inchadas sobressaindo do corpo esquelético. Os olhos de um escuro de abismos recônditos. As carapinhas sem brilho, cobertas de poeira, de terra amarela .

Comeu ostras, bebeu vinho, conversou até tarde e adormeceu na cama que lhe destinaram.

Acordou já o dia ia alto, o coração palpitante, tivera pesadelos, mortes, a sua própria morte e a aflição para sair da morte,  o debater do corpo, ou não, seria a alma, porque ele via o corpo envolto na mortalha, um pano imenso, branco,  manchas de sangue e vultos que se guerreavam na disputa do corpo dele e algo, uma força que se colava ao corpo, que se pressentia nele e de repente um dos vultos desvia-se da alma e corre para o corpo, para o cortar, o dividir...foi quando acordou, se mexeu, se procurou ainda imerso na névoa do sono e viu que  era dia de sol nascido, correu à porta e já não viu a lancha da Marinha que o levaria a casa, à sua casa de ali, de estar longe.

O coração bateu com mais força, suou, temeu-se de ser castigado, dado como desertor, julgado em conselho de guerra, condenado.

Lembrava-se dum camarada que abateu um jagudi. Os jagudis eram abutres preservados como reserva animal natural e preciosa. Eram uma aves de porte altivo, insensível, que espreitavam na copa das árvores uma oportunidade de corpo apodrecido. Evitavam a decomposição dos corpos  a céu aberto. As cabeças enormes, depenadas, os bicos curvos, poderosos. Os olhos sobressaídos, sanguinários. Constituíam uma visão tétrica do ambiente. Dera-lhe um tiro, um só tiro e a ave enorme abateu-se no solo.

Foi condenado a um mês de prisão e aumento do tempo de permanência. Vi o choro dele, convulsivo, quando recolhia à cela.

Manuel António, fez um gesto largo com os braços e apresentou-se ao capitão, que adormecera, se esqueceu de pedir a alguém que o acordasse, a quem?

O Capitão mandou informação para o outro quartel e ficou resolvido que iria na próxima lancha, mas só havia outra dentro de seis dias. Sem castigos...

Os dias passados sem nada para fazer, ás voltas em volta do quartel , as brincadeiras dos miúdos sempre iguais, monótonas, apenas os ritmos do pilão o distraíam um pouco. O batuque e a cantoria. O amigo convidava-o para comer ostras. os dias iam compridos dilaceravam-lhe a saudade. Alexandra. Podia apenas mandar-lhe os aerogramas, cartas oficiais oferecidas, mas curtas para o tanto que queria escrever. Estava doente com paludismo. Febre, enjoos, alucinações..

 

"Meu amor, minha vida.

Fiquei retido neste aquartelamento porque adormeci. O meu cérebro, a minha alma, não param de me recriminar por este deslize. Estar lá, no local onde estão as minhas coisas, as nossas coisa, e os amigos que são uma família que já não dispenso. As tuas fotos estão lá, não vou receber as tuas cartas de uma semana inteira, eu escrevo-te daqui e vais sabendo noticias, eu lerei todas juntas quando regressar.

Apanhei paludismo. Isto é irritante e deixa-me carente de mimos, estares aqui e poder mexer nas tuas maminhas, cheirar tudo de ti, meu amor. tenho o cheiro do teu sexo nas minhas narinas, não suporto isto sem o teu cheiro. És toda e tudo na minha vida e eu amo-te e quero viver para ti, para o momento sublime do nosso reencontro...

Esteve três dias na cama, febre e vómitos, enjoos ao cheiro da comida, nem a sopa, apenas rodelas de ananás em calda e água. Água para tomar os comprimidos de quinino. A imagem de Alexandra, tão linda de dentro dele em delírio, o cabelo curto, negro o rosto redondo e os olhos grandes, belos e tão brilhantes de amor. O corpo dela , corpo miúdo, airoso, o andar dela. Tudo nela o encantava, mas o cheiro, o aroma do sexo excitado pelas carícias dos seus dedos.

A lancha partia no dia seguinte, ás seis da manhã. Pediu a vários, aos sentinelas que seriam rendidos a essa hora, que o acordassem.

A lancha de cor cinzenta tinha uma tripulação de seis homens, com o comandante. Uma metralhadora pesada de balas  tracejantes. Tudo era cinzento, um cinza azulado. Chegariam a meio da tarde.

Manuel António estava mais magro, os três dias sem comer praticamente nada, por fim até enjoara as rodelas de ananás em calda, apenas a água. Sentia fome, uma fome sem sustentação e foi comendo da ração de combate que lhe haviam distribuído.

Era ele e outro, da tropa geral, tropa macaca, encostados à proa chata da lancha. Em frente os marinheiros sob uma espécie de coberta  a prepararem o almoço.

Manuel António, os olhos fixos nos preparos, no tipo de comida, o fogão com uma frigideira onde colocaram batatas a fritar.

Á medida que iam fritando as batatas exalavam um aroma conhecido há muito refundido na memória. Batatas fritas!...

Os marinheiros olhavam na direcção deles, os dois da macaca que mastigavam o sem sabor da ração de concentrados. Os olhos fixos na distância que os separava 6 a 7 metros, talvez, olhos que não se liam. O cheiro a batatas fritas intenso.

_Talvez eles nos ofereçam de comer, somos só dois...

_Talvez...disse Manuel António.

Os outros foram comendo o delicioso repasto. A lancha navegava pelo meio do rio por entre a luxuriosa vegetação de ambas as margens. Ás vezes soltavam gargalhadas. O sol a pique queimava. Os olhos amorteciam a ilusão de comer algo que não comiam há muitos meses. Batatas fritas...mas não comeram

 

 

18
Out08

MEMÓRIAS DA GUERRA - MATAR OU MORRER!...

samueldabo

Vaga lumes luziam em silêncio por entre o capim de hastes delgadas e cheiros impertinentes que se alojavam nos corpos e no interior de cada um, como um estigma de amor.

As botas enterravam-se na água lamacenta das bolanhas vazias de arroz, talvez densamente povoadas de repteis e outros anfíbios ou semi anfíbios, ou peixes sem nome e de outras pequeníssimas espécies de habitantes aquáticos, que fugiam espavoridos a cada passo e ao ruído surdo do chap chap cuidadoso de cada passada.

Eram duas longas filas de homens que se entregavam aos mais variados pensamentos, entre a atenção sobre a  floresta escura,  e algum ruído indissociável do perigo que pressentiam avindo da sua densidade impenetrável.

Manuel António seguia na fila da esquerda, a mais distante da orla da mata. decidira não fazer a barba. Tomara o banho antes de se deitar e escrevera uma carta longa para Alexandra. Não uma despedida, mas uma carta densa de amor de projectos ao porvir. O filho que queriam ter. O filho deles, varão. Queria um menino, não porque desgostasse de uma menina, mas tinha receio de não ser capaz de a educar.

Atrás dele, o Fátima, sussurrava Pais nossos e Avé Marias, um rosário entre o gatilho da espingarda  e a mão que segurava o cano, junto ao carregador de munições. A voz pastosa quase inaudível, uma ladainha.

Na sua frente, passos trôpegos, gingando ora para um ora para outro lado ao peso das granadas de Bazooka, e do bagaço que ingeria sempre que havia uma operação de combate, o Cortegaça, espalhafatoso na parada do quartel ,barafustando contra tudo e todos, agora mudo, congeminando sabe-se lá o quê ou contra quem.

Estropiados. Nenhum deles queria sair dali estropiado. Antes morrer. E iam ficando, sem o saberem, sem darem por isso a cada estremecer do coração, ao estalido vindo da mata, ao riso súbito, aviltante, dos macacos despertos pelo cheiro humano irrompendo pelo seu habitat. Seguiam o trilho que alguém erudito traçara com nuances hipócritas de ser  o melhor para os homens, o mais seguro e capaz de surpreender o inimigo. Um risco sobre o papel rijo e amarelado do mapa e de onde sobressaía a mancha verde da floresta e o local exacto do acampamento ou aldeia a destruir.

Manuel António é um pacifista. Não quer matar. Não quer destruir o lar de ninguém.  Aceitou de si, vir por amor. Acreditando que era possível vir e voltar sem que tivesse ocorrido nada do que temia, matar, por exemplo. Não pensava na sua própria morte, mas o acto de matar um outro ser que ele admirava, que ele amava e a quem não podia dizer uma palavra se se encontrassem frente a frente. Era matar ou morrer, sem uma palavra. O mais rápido, o menos surpreso, o sangue mais frio, ou o dedo mais hábil. Matar ou morrer.

Sentia as lágrimas ofuscar-lhe a visão.

As pernas começavam a pesar, de molhados, os uniformes ganhavam uma pressão intransigente  sobre as pernas. A noite ainda densa e eis que se chegam ao local do assalto. Os homens são dispostos ao redor da aldeia para que não escape nada nem ninguém. Casas de  lama e capim. Uma clareira castanha no verde da mata. África.

É dada a ordem e como uma mola, os que estavam instruídos para a tomada do objectivo, lançam-se confiantes que não terão oposição, sobre as casas de onde começam a sair animais de criação, galos galinhas e porcos. Das casas, aos gritos indecifráveis porque de dialectos tribais ou étnicos, saem mulheres de idade, crianças, velhos que vociferam contra os invasores. Ouvem-se disparos de metralhadoras de armas ligeiras, gritos de filhos da puta, cabrões e outros selváticos de dentro, da raiva de estar ali e não querer ou de gostar desta farsa de ser homem. Há fumo, labaredas que se propagam ao capim envolvente das palhotas, o choro das crianças cansadas de correr em volta. O ranho, as lágrimas ,o suor de mistura com o pó e o cisco das palhas ardidas.Imagem Dantesca no dealbar da madrugada.

Manuel António está na retaguarda , dos que fazem segurança à chacina dos bens e da dignidade de uns tantos que resolveram tomar o partido dos bandidos e observa aterrado o vai e vem dos homens possessos. Homens, como ele. Dum povo que vive amordaçado e convencido que é dono de outros povos tão longe. E pensa que é tão responsável como os que executam.

Feita a operação, trazidos alguns prisioneiros, mulheres e crianças, para servir de aviso à restante população rebelde, iniciam o regresso, constatando que não havia armas, nem gente armada, nem Turras, naquelas miseras palhotas no interior da mata.

O mesmo caminho de regresso. "Olha o papão. Deus nosso Senhor castiga-te." Lembrava-se, de quando era criança e fazia um estrago, os ralhos adultos, o olhar severo, do lado de fora e de cima de si, poderosos e ele franzino, dois palmos de gente, tremendo de medo pelos castigos...

O sol apareceu e trouxe a habitual nuvem de mosquitos sugadores dos suores entretanto expelidos pelos poros dos corpos cansados. A mesma tensão, agora acrescida pelo medo de qualquer retaliação. Os rostos têm uma cor macilenta. Os olhos salientes, as pálpebras inchadas. Manuel António é o penúltimo porque o Fátima fazia questão de ser o último. Era Fátima. Sentia-se imbuído dum espírito de protecção.

Soam tiros de costureirinha, assim chamada porque o som parecia o de uma máquina de coser roupas. Explosões de morteiro 62. Os homens espalham-se pelo chão e disparam as suas armas na direcção da mata.

Manuel António repara que o Fátima está inerte, que geme baixo e nota-lhe uma mancha negra junto ao ombro. O tiroteio é intenso. Ouvem-se gritos de perto, em Crioulo que os mandam para a sua terra, que lhes chamam bandidos. Julga ver vultos que correm tão perto e pensa que é  desta que não vai escapar.  Levanta-se um pouco para amparar o Fátima, arrastá-lo para junto do enfermeiro que, transido de medo espumava da boca seca e pastosa dum suco horrendo entre branco e castanho, sangue. Por momentos pensa que o Fátima cumprira a sua missão, o quer que fosse, bala ou estilhaço de granada, se ele fosse o último, seria ele o atingido.

Manuel António voltou para a sua posição, rastejando e de cócoras, olhos na mata e dá com ele,os olhos dele luminosos, os dentes brancos, um lenço vermelho sujo enrolado na cabeça. É um homem como ele, mas está do outro lado da vida. Grunhe palavras inteligíveis e dispara na sua direcção. Rápido estende-se e rebola no chão de capim. Ouve os silvos das balas sobre si. Angústia. os passos que se movem rápidos e dispara gritando: Alexandraaaaaaa!!!! dispara um carregador e outro que conseguiu enfiar entre tremores.

_Já o mataste!.

Era uma voz conhecida. Palmadas nos seus ombros, nas costas, os tiros ainda que se afastavam. Névoa no interior do cérebro. Saliva acre que teimava em escorrer-lhe de dentro de si

_Mataste-o pá. Porra!   O Cortegaça, já sóbrio, sem o peso das granadas de bazooka entretanto despejadas.

_Eu?!  Incrédulo, ele, Manuel António, a levantar-se atordoado, a apalpar.se e a cuspir a ver se era sangue o que teimava em escorrer de si, por entre os seu lábios. Não, não era sangue, ou era, de uma cápsula de bala que saltara da culatra e foi ver, aproximou-se de onde o comandante e outros pegavam na arma do homem que ele supostamente matara. E lá estava, as vísceras de fora, enrodilhadas entre si, o intestino grosso e o delgado e todos os órgãos à volta, macabros, numa evidência de corpo tracejado a bala. E o cheiro a carne, não de fora, mas de dentro da carne, pestilento, onde já nuvens de mosquitos se banqueteavam e em cima, por cima das cabeças deles, os abutres atentos, farejantes da morte em busca do festim. Olhou o homem de pele escura, os dentes brancos agora escondidos sobre os lábios cerrados, os olhos abertos, negros, ainda com um resto de brilho, como vidro, e em volta a córnea amarelada. As mãos abandonadas de palmas voltadas para cima, como se pedisse desculpa ou se oferecesse em sacrifício de uma causa a que Deus?... meu Deus!...

Voltou-se e seguiu em passos lentos na direcção de amigos que o sentiam  desfeito. Um esgar de dor em todo o rosto, os membros entorpecidos, névoa no cérebro e uma palavra que repetia em sucessivos estertores da voz:

E agora Manuel António?...E agora....?

 

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