U Í G E - A TOCA DOS RATOS
O Sol ainda a meio da trajectória do eixo da Terra, trémulo das nuvens que passavam por ele impelidas pelo vento e tu, meu amor, pequenino o teu vulto visto de cima, da amurada do navio, paquete de luxo, adaptado a transporte de tropas, onde de olhos húmidos e voz embargada pela emoção de te deixar, eu te fixava entre a multidão de gente que se movia numa inquietação de ver.
Tinha trazido o possivel de ti para te ter e já tinha saudades quando o navio ultrapassou a linha de visibilidade da cidade. Os saquinhos de plástico onde guardava as relíquias, os teus cabelos negros e fortes, uma madeixa que cortámos um dia antes para que o aroma se mantivesse activo por mais tempo. Os pelos do púbis, ainda humedecidos do último orgasmo quando te afagava o sexo docemente com as mãos quentes de desejos. O teu cheiro inebriante de todos os meus sentidos. O retrato onde toda a beleza do teu ser me doía de belo, de falta.
O navio tinha três classes de camarotes e agora tinha mais o porão, onde se amontoavam a maioria dos jovens feitos combatentes. A 1ª classe destinava-se aos oficiais, a 2ª aos sargentos e furriéis, a 3ª mais furriéis a alguns cabos.
O porão era para o resto da maralha. Antiga toca dos ratos, adaptada a camarata gigantesca, os beliches triplos, ficando o último rente ao tecto do porão do navio.
Subi ao meu lugar e deitei-me sobre o colchão de espuma macia. A um palmo a madeira pintada de branco que ainda cheirava a desinfectante. Fechei os olhos. O cheiro, os solavancos do navio. abrir de novo e sentir todo o peso duma pressão física omnipresente, que me comprime de encontro ao colchão, que me tolhe qualquer pensamento. Os primeiros vómitos de quem nunca tinha visto o mar, a maioria vinha do interior profundo, da raia, poucos nesta leva vinham do litoral. O cheiro a penetrar nas narinas a sufocar a alma entaipada, desinfectante com o azedo dos ácidos do estômago, e mais o suor dos corpos e ainda havia os que só tomavam banho ao Domingo. E era uma alucinação de imagens que se instalavam na superfície da mente, empurradas de dentro, de onde toda a revolta se fixara, atenta, aos movimentos da alma. Alexandra!... Névoa. Cheiros. O tecto branco, branco sujo quase creme. A ondulação, acima ,abaixo, para um e outro lado, chocalhando o que restava de alimentos no estômago que se insurgiam e teimavam em subir de lá, do fundo do saco, de mim obliquo, azedo, entontecido pelo marasmo agitante da toca dos ratos.
Haveria ratos algures entre a bagagem. Escondidos em alguma fresta do convés, ou nos esconsos do fundo. Dizem que o porão é a alma do navio. Imagino-os à espreita que tudo se acalme, atentos ao movimento dos corpos, aos silêncios que em absoluto cairão pela noite. Virão cheirar-me, penso, e acordarei com o roçar dos bigodes no meu rosto, ou o quente do mijo derramado na aflição da fuga. E instala-se-me uma outra fobia. Os ratos...
Decido levantar-me e procurar refúgio em algum outro lugar mais aberto, respirável. Pelo caminho , cambaleando dos movimentos das ondas, encontro corpos agoniados que se desfazem de parte de si, até ao amarelo da bílis. Um cheiro nauseabundo, pestilento que me provoca náuseas. Desvio-me duma mancha de vómito. São orgasmos do estômago, dizem. Orgasmos dolorosos, desafiantes da nossa integridade física e espiritual.
E Deus aqui, onde paira? A quem abençoa? Alexandra!... O meu Deus é uma mulher. É dela que trago as relíquias que guardo religiosamente e que defenderei com a vida. É por ela que vou vencer, que quero vencer e esta é só a primeira provação.
Na coberta do navio há rostos serenos que aspiram a brisa do mar e colhem do Sol a luz ofuscada de nuvens, mas luz. Há gente encostada à sombra das balsas de salvação. Vejo um espaço vazio e um amigo que fuma um cigarro, junto a uma destas embarcações brancas cobertas de lona.
_Alberto!...Que lugar de coube, amigo?
_O porão!... Mas já me pirei, quero que eles se fodam, vou fazer a viagem aqui mesmo.
Ri do seu ar desvairado e decidido. Ao relento do dia e da noite, acordar orvalhado como flores dum jardim surreal que imaginamos.
_Boa, amigo, vou já buscar as minhas coisas à toca dos ratos. Guarda-me um pouco de espaço.
Corri, como se houvesse pressa, e lembrei-me dos condenados sem o saber que corriam ao trabalho nas câmaras de gás dos campos nazis. Pasta para sabão... Voltei à toca e ao cheiro impossível, sustendo a respiração por momentos e respirando pela boca, para evitar os vómitos. Porque amo tudo de mim.
Na coberta o ar é puro. Só mar e Céu. Há noite divirto-me na descoberta das Estrelas conhecidas, as Constelações, a Ursa Maior a Ursa Menor, a Cassiopeia, a Estrela Polar, Marte, a Lua. As fixas são os Planetas. As que piscam são Estrelas e há-as cadentes. Marte avermelhado. O fumo do cigarro quase azul no ar que rareia. Brisa leve. Há corpos espalhados em redor da amurada. E penso no homem que em breve poisará na Lua e eu não estarei lá para ver.
As refeições são tomadas com a ligeireza possivel. Uma das mãos segura o prato e o copo do vinho. A outra faz o resto. O comandante avisara que o mar estava encapelado, tormentoso e haveria balanços frequentes do navio.
O Sol esta manhã nasceu do lado contrário do navio de onde nascera ontem, de onde nos acompanhara desde a saída. Alguma confusão no meu cérebro. O raciocínio lento. E pensar que andamos ás voltas, como num rapto em que os bandidos não quisessem que apreendêssemos o caminho de regresso..
Os Golfinhos acompanham a rota dos navio com movimentos graciosos e risos estridentes.
Sinto que talvez nos queiram transmitir confiança. Saltam e mergulham ,incessantes, durante horas, ou nos alertem para a imensidão da vida que ainda há para viver, ou nos cantem das suas canções de amor.