Tinha os dentes escurecidos pela cárie ou tártaro, a falta de higiene, e havia dois espaços em falso nos de cima, intervalados por um dos incisivos, os lábios grossos, estatura baixa, obesidade acentuada, porque comia de tudo, o que lhe cabia do rancho e as sobras, o que mais ninguém queria, ou o que outros deixavam na marmita por nojo da refeição mal confeccionada. Uns olhos grandes, bonitos, inocentes, onde transparecia lealdade. O bigode era farto e quase lhe cobria os lábios. Mãos sapudas, calejadas de enxada, a testa enrugada, pele morena, tisnada e tinha apenas 20 e poucos anos.
Era básico. Ser básico, na tropa, é ser o último na escala de valores da hierarquia. É ser picaresco e ter direito a ser confrontado com a hilaridade de todos, mesmo os que, não sendo básicos, padecem da mesma insuficiência de raciocínio face às exigências técnicas e tácticas da missão em que estavam inseridos.
Tinha a função de ajudante de padeiro. Ser padeiro alterava por completo o seu estatuto. Ele sabia que o posto de básico era como ser pastor, jornaleiro no amanho da terra, aguadeiro entre os ranchos de ceifeiras ou cavadores de enxada.
O primeiro-sargento cooptara Manuel António para a secretaria, tinha imenso trabalho e o poeta sabia escrever à máquina, sabia digerir um ofício, responder às inquirições, fazer contas.
Manuel António, passo firme, cabeça levantada, o cigarro entre os dedos, contemplava a figura do básico e pensava que ele era o valor mais alto e genuíno de entre toda a companhia. Admirava nele o orgulho de ser padeiro, de querer ter estatuto diferenciado, a revolta com que se indignava por lhe chamarem ironicamente básico.
_Eu báseco, pá!!! Eu sou padeiro!
E agora, aquela noticia inesperada, o primeiro-sargento, os ares efeminados, bamboleando o corpo, as mãos pelo cabelo, como Nero, o Imperador louco, a convidá-lo para a secretaria.
Tinha ficado radiante que o capitão tivesse autorizado sob a indicação aquiescente do alferes. Para Manuel António, que sentia a estima de oficiais e sargentos, todos milicianos, contrários à guerra como ele, e sub-repticiamente desobedientes, ficar na secretaria era um luxo que queria usufruir humildemente para não acicatar invejas. Poder escrever à máquina, artigos e outras histórias que se aglomeravam por sair de si e a que os dedos, a caneta, não acompanhavam a velocidade das ideias fluentes.
Estranhamente ele que colaborava num jornal hostil ao regime, que se auto intitulava de comunista, defendia ideias consideradas subversivas, lia livros proibidos e estava marcado pela polícia política como possível activista a ter em conta.
Podia perfeitamente ser comparado ao básico porque ambos eram incompatíveis com a guerra e ambos foram colocados em áreas diferentes das que receberam formação.
A sombra do mangueiro no centro da parada, mosquitos irrequietos poisavam sobre o suor do pescoço e um sorriso abstracto de criança que os olhava indiferente.
_E tu Francês?
_Eu o quê?!
_Porque vieste, se estavas em França, terra livre, coutada de tantos que desertaram.
O Francês era de Vila Verde, um rosto simples, pacato, de homem bom. Tinha um sorriso que parecia pedir desculpa por tudo, por estar ali, por ter vindo, por não se ter deixado ficar.
_Vim porque tenho umas leiras de família e disseram-me que perdia tudo. Porque tive medo que me fossem buscar à força. Sou casado e tenho um filho que já mal me lembro.
Há um aquartelamento que é bombardeado todos os dias, um pouco longe e tão perto, ouvem-se as saídas de morteiro e o deflagrar das granadas, como uma cantilena rumorejante.
A figura frágil e sedutora de Alexandra interpôs-se de repente, como um mito que se entranha. Alexandra é um amor estranho e impossível de definir porque não sendo possessivo nem obsessivo é tão intrínseco que lhe dói estar ausente dela, do seu cheiro de quando acariciava o sexo e sentia a humidade de fluidos contagiantes, o perfume do interior da boca, de dentro dela, quando a beijava, se chupavam as línguas, o fogo dos corpos que estremeciam de sensações rítmicas. As mãos dela no seu sexo, os lábios que o beijavam, o nariz em carícias ao redor da glande.
Suspirou, nem dera pela pergunta do Francês que permanecia no ar.
_E tu Manuel António, porque vieste?
Há quanto tempo? a pergunta, ou que estamos aqui. Faz meses, anos...Quanto falta?...
Riu-se, os olhos nos olhos mansos do outro que sorria do mesmo modo aberto com que se punha a caminho da missão, carregado de granadas de morteiro. Recusando ser carne para canhão, mas indo...
_Por amor, amigo, simplesmente por amor.
autor: j.r.g.