BATATAS FRITAS - MEMÓRIAS DA GUERRA
Do regresso da cidade, a lancha aportou a um aquartelamento intermédio, porque viajar de noite não era aconselhável. Qualquer luz seria um alvo fácil, ou porque a tropa não estava disposta a horas extraordinárias.
Manuel António encontrou um amigo, um condiscipulo de escola de vila, de pescarias no juncal junto ás dunas. Há quanto tempo? Uma eternidade todo o curto tempo decorrido e ainda o fim não se pressentia, se é que havia fim ou tempo, ou apenas o verde das arvores frondosas palmeira que respiravam do alto de onde talvez se visse o mundo, o outro mundo de onde viera e deixara uma parte importante da alma.
Partiriam de manhã ás 6. Passou o dia em volta do rio, as crianças brincavam com canas, pequenos pedaços de madeira que serviam de barcos, corriam sem sentido em volta de si, em volta dum tempo que tardava. As barrigas inchadas sobressaindo do corpo esquelético. Os olhos de um escuro de abismos recônditos. As carapinhas sem brilho, cobertas de poeira, de terra amarela .
Comeu ostras, bebeu vinho, conversou até tarde e adormeceu na cama que lhe destinaram.
Acordou já o dia ia alto, o coração palpitante, tivera pesadelos, mortes, a sua própria morte e a aflição para sair da morte, o debater do corpo, ou não, seria a alma, porque ele via o corpo envolto na mortalha, um pano imenso, branco, manchas de sangue e vultos que se guerreavam na disputa do corpo dele e algo, uma força que se colava ao corpo, que se pressentia nele e de repente um dos vultos desvia-se da alma e corre para o corpo, para o cortar, o dividir...foi quando acordou, se mexeu, se procurou ainda imerso na névoa do sono e viu que era dia de sol nascido, correu à porta e já não viu a lancha da Marinha que o levaria a casa, à sua casa de ali, de estar longe.
O coração bateu com mais força, suou, temeu-se de ser castigado, dado como desertor, julgado em conselho de guerra, condenado.
Lembrava-se dum camarada que abateu um jagudi. Os jagudis eram abutres preservados como reserva animal natural e preciosa. Eram uma aves de porte altivo, insensível, que espreitavam na copa das árvores uma oportunidade de corpo apodrecido. Evitavam a decomposição dos corpos a céu aberto. As cabeças enormes, depenadas, os bicos curvos, poderosos. Os olhos sobressaídos, sanguinários. Constituíam uma visão tétrica do ambiente. Dera-lhe um tiro, um só tiro e a ave enorme abateu-se no solo.
Foi condenado a um mês de prisão e aumento do tempo de permanência. Vi o choro dele, convulsivo, quando recolhia à cela.
Manuel António, fez um gesto largo com os braços e apresentou-se ao capitão, que adormecera, se esqueceu de pedir a alguém que o acordasse, a quem?
O Capitão mandou informação para o outro quartel e ficou resolvido que iria na próxima lancha, mas só havia outra dentro de seis dias. Sem castigos...
Os dias passados sem nada para fazer, ás voltas em volta do quartel , as brincadeiras dos miúdos sempre iguais, monótonas, apenas os ritmos do pilão o distraíam um pouco. O batuque e a cantoria. O amigo convidava-o para comer ostras. os dias iam compridos dilaceravam-lhe a saudade. Alexandra. Podia apenas mandar-lhe os aerogramas, cartas oficiais oferecidas, mas curtas para o tanto que queria escrever. Estava doente com paludismo. Febre, enjoos, alucinações..
"Meu amor, minha vida.
Fiquei retido neste aquartelamento porque adormeci. O meu cérebro, a minha alma, não param de me recriminar por este deslize. Estar lá, no local onde estão as minhas coisas, as nossas coisa, e os amigos que são uma família que já não dispenso. As tuas fotos estão lá, não vou receber as tuas cartas de uma semana inteira, eu escrevo-te daqui e vais sabendo noticias, eu lerei todas juntas quando regressar.
Apanhei paludismo. Isto é irritante e deixa-me carente de mimos, estares aqui e poder mexer nas tuas maminhas, cheirar tudo de ti, meu amor. tenho o cheiro do teu sexo nas minhas narinas, não suporto isto sem o teu cheiro. És toda e tudo na minha vida e eu amo-te e quero viver para ti, para o momento sublime do nosso reencontro...
Esteve três dias na cama, febre e vómitos, enjoos ao cheiro da comida, nem a sopa, apenas rodelas de ananás em calda e água. Água para tomar os comprimidos de quinino. A imagem de Alexandra, tão linda de dentro dele em delírio, o cabelo curto, negro o rosto redondo e os olhos grandes, belos e tão brilhantes de amor. O corpo dela , corpo miúdo, airoso, o andar dela. Tudo nela o encantava, mas o cheiro, o aroma do sexo excitado pelas carícias dos seus dedos.
A lancha partia no dia seguinte, ás seis da manhã. Pediu a vários, aos sentinelas que seriam rendidos a essa hora, que o acordassem.
A lancha de cor cinzenta tinha uma tripulação de seis homens, com o comandante. Uma metralhadora pesada de balas tracejantes. Tudo era cinzento, um cinza azulado. Chegariam a meio da tarde.
Manuel António estava mais magro, os três dias sem comer praticamente nada, por fim até enjoara as rodelas de ananás em calda, apenas a água. Sentia fome, uma fome sem sustentação e foi comendo da ração de combate que lhe haviam distribuído.
Era ele e outro, da tropa geral, tropa macaca, encostados à proa chata da lancha. Em frente os marinheiros sob uma espécie de coberta a prepararem o almoço.
Manuel António, os olhos fixos nos preparos, no tipo de comida, o fogão com uma frigideira onde colocaram batatas a fritar.
Á medida que iam fritando as batatas exalavam um aroma conhecido há muito refundido na memória. Batatas fritas!...
Os marinheiros olhavam na direcção deles, os dois da macaca que mastigavam o sem sabor da ração de concentrados. Os olhos fixos na distância que os separava 6 a 7 metros, talvez, olhos que não se liam. O cheiro a batatas fritas intenso.
_Talvez eles nos ofereçam de comer, somos só dois...
_Talvez...disse Manuel António.
Os outros foram comendo o delicioso repasto. A lancha navegava pelo meio do rio por entre a luxuriosa vegetação de ambas as margens. Ás vezes soltavam gargalhadas. O sol a pique queimava. Os olhos amorteciam a ilusão de comer algo que não comiam há muitos meses. Batatas fritas...mas não comeram