PAIXÃO EM ANGRA DO HEROÍSMO I
Em Angra do Heroísmo, o Sol enrolado nas nuvens densas, como amante em relaxe após noite de intensos fervores. Envergonhado. Transpirando calor intenso no dealbar da manhã.
O movimento dos carros na rua da Sé era já intenso. Grupos de pessoas seguiam a pé, descendo do alto das covas para a missa das nove. É Domingo.
Estava sentado na mesa vermelha ,sob pano finamente decorado, passando os olhos pelo jornal do dia, o pensamento longe, a antever um amanhã recheado de emoções.
Levanto os olhos, por um raio de luz, instante fugaz, que o abrir da porta fez incidir sobre o teu rosto, ali sentada, em frente da mesa onde eu estava e não tinha dado pela tua presença luminosa.
Fizeste um gesto de surpresa, levando a mão que estava livre aos olhos incomodados, enquanto eu te fixava, agora, preso da beleza, da graciosidade do gesto, do enlevo que o ambiente da Ilha te envolvia, e sorriste ao dar por mim, maliciosamente sorridente da tua surpresa.
Os teus olhos grandes, verdes mar, brilhantes de encanto, o menear de ombros, como a pedir desculpa por teres interrompido a minha leitura, por estares ali e seres a causa da minha fixação.
-Bom dia. Digo que é professora.
A minha voz saiu , para surpresa minha, desimpedida, clara, sem conseguir deixar a prisão, doce prisão, daqueles olhos onde adivinhava sonhos, fluidos de mensagens, pedaços de afectos.
-Sim, sou. Tenho escrito em algum lado?
Um sorriso franco, atractivo, a alvura dos dentes com uma pequena quase ínfima , abertura entre os dois da frente, os lábios macios, húmidos do café e a tua língua a limpar resquícios do bolo, uma D. Amélia, rosada.
-Tinha um ar Pedagógico.
Falávamos entre mesas, soltou uma gargalhada suave, franca, e os olhos reforçaram o brilho de entre o castanho do cabelo, liso, sobre os ombros, e a tez do rosto de um moreno claro, imagem sedutora e simples, sem pinturas de guerra.
-Não sabia que havia um ar pedagógico.
Uma lufada de ar consegue romper a barreira da porta quando se abre e deixa entrar um doce cheiro basáltico que se mistura com os aromas dos confeitos e da mulher que me cerca em novelos de sedução, e me atrai ao centro da ilha que ela é dentro da própria ilha, numa simbiose de convexos interesses, em que uma e outra se revezam na proeminência em que foco o meu olhar.
-Digamos que é um ar ausente. As mãos metódicas no manuseamento da chávena. A pensar em notas e avaliação de alunos, como se lhes soletrasse os nomes.
O teu riso a desfazer equívocos , transparente, cúmplice , a voz quente e terna de uma suavidade aveludada, entranhando-se em mim, ora tenso, ora descontraído, eu que fui sempre um menino triste e só e que venho aprendendo a emancipar-me dessa tristeza mórbida desde a infância.
-Sou Angrense. Os meus pais são donos de uma farmácia, Estive no Continente a estudar e consegui que me colocassem em Angra. Porque eu adoro Angra...
Sigo o movimento dos lábios, bem desenhados no rosto onde o nariz, pequeno, direito, se abre e fecha em movimentos compassados de inalação. Noto o rubor das faces.
-...não me está a ouvir. Agora deixa-me a falar para o boneco.
Agarraste-me, sabes que estou já demasiado envolvido para recuar e falas-me com um tom crescente de intimidade, como se fossemos conhecidos de sempre.
-Perdoe-me, eu sou Alberto e venho do Continente, em serviço. E ouvi tudo: é dona da farmácia, estudou blá blá blá
Os nossos olhos encontraram-se sorridentes, pujantes de mensagens subliminares, e os lábios, os meus e os dela abrindo-se em sorrisos de nascente afeição. Empatia.
-De facto, somos o máximo, nem nos apresentámos. Se os meus alunos me vissem...Sou a Clara.
Estendi a minha mão e ao contacto com a mão dela, pequenina, indefesa, eléctrica , senti um choque repentino de grande intensidade e notei que ela teria sentido algo parecido, porque se levantou repentinamente, as nossas mãos presas por laços invisíveis, coladas, afins de não sei bem ainda o quê.
-Um beijinho.
Os lábios de um e outro nas faces, as dela rosadas, quentes, nas minhas a sensação de frescura dos lábios dela, como se os tivesse prematuramente molhado da sua seiva para me marcar.
continua
registed by: Samuel Dabó