Naquele dia o dilúvio abateu-se sobre a terra vermelha, numa mistura confusa de vento e chuva, qual deles o mais violento dos elementos, causando a destruição na floresta, árvores tombadas, torrentes de água e lama de mistura com os gritos espavoridos dos macacos.
As chapas de Zinco que cobrem os telhados das casernas, voam como frágeis folhas de papel e os homens, esses , saem para a rua eufóricos, os corpos nus. Esguicham , aqui e ali como os macacos e saúdam a chuva, cambaleantes, ao sabor do vento.
Manuel António escrevia a centésima carta, uma por dia. Meu grande amor....
Saltou à rua para, também ele, saudar as primeiras chuvas. Por pouco um pedaço do telhado desavindo com a intempérie , não o atingiu. Pensou melhor e voltou à escrita da carta interrompida.
Um companheiro, o Falcão, entrou de rompante na caserna, os olhos esbugalhados, a cara ardente e um laivo de espuma no canto dos lábios. Era um tipo obscuro, de poucas palavras, que se fixava em temas pouco viáveis à razão. Diziam que estava apanhado, louco.
O Falcão passava o tempo disponível bebericando na cantina. Dirigia a palavra a um qualquer sem esperar a resposta. Não havia resposta.
Manuel António estranhou a entrada súbita de tal personagem àquela hora. Medo da tempestade?
O Falcão queria falar. Trazia na mão uma granada de mão ofensiva.
- Sabes, Manuel António, tenho muita consideração por ti.
Cala-se, por momentos e olha a granada. Manuel António não sabe o que pensar, tolhido pela imagem da granada e os olhos do outro, longe, ausentes da conversa que ele próprio começara.
- Que fazes com uma granada nas mãos?
A tempestade amainava e já o Sol procura romper os farrapos de nuvens em louca correria.
Falcão, olha a granada, mais uma vez e diz.
- Gostava de ver o efeito da explosão, os estilhaços, rompendo o ar quente. Mas, claro, eu sei que não é possível . Está descansado que não vou tirar a cavilha.
Manuel António sentiu medo e incapacidade para lidar com a situação. Estavam ali os dois a olhar a granada, apertada na mão de Falcão, verde escuro, oval, a granada.
Assim como entrou, Falcão saiu sem dizer mais. Manuel António respirou de alivio e fechou a carta de muitas folhas que acabara de escrever para Alexandra. Deitou-se na cama para reflectir um pouco sobre o episódio e adormeceu.
Ao acordar, a noite caíra sobre a tabanca . Sonhou com a terra distante onde tudo parara à sua espera, e fluidos de amor subiam no ar fresco e leve das manhãs.
Havia grande alvoroço na caserna. Grupos falavam em surdina, meneando cabeças. Gestos incrédulos. Perguntas no ar. Sem resposta.
- Cá para mim foi algum turra infiltrado. Dizia um. E logo outro, incrédulo, longínquo .
- Mas, os cantineiros ? Não fizeram mal a ninguém. Não mataram. Não comeram mulher grande, nem bajuda . Não roubaram galinhas, cabrito.
Manuel António ficou a saber que alguém tinha atirado uma granada para o interior do balcão da cantina dos soldados. Que tinham morrido os dois cantineiros Que não se sabia quem fora. Estava instalada a confusão. Vieram peritos da Cidade. O medo de novos atentados.
Manuel António pensou em Falcão. A granada oval, verde escuro, morte. O semblante alterado. Os olhos, longe. Mas, não, não era possível . Companheiros, uma quase família.
registed by: Samuel Dabó